domingo, 9 de maio de 2010

MAS QUE MERDA! UM PANORAMA CULTURAL DO FEDOR QUE NÃO SE SENTE.




Ou sobre como as fezes participam do imaginário cultural produzindo transgressão e questionando costumes estabelecidos.




De diferentes formas cores, tamanhos e texturas, os dejetos humanos expelidos pelo ânus, mais conhecidos como fezes, são uma boa matéria prima para qualquer artista. Junta-se o caráter contraventor e questionador que os restos humanos têm e pronto. Está aí um dos instrumentos e temas mais repulsivos e profícuo das artes.


Pode parecer estranho em primeira estância ou muito nojento falar desse assunto, mas as fezes estão ligadas às artes mais do que se possa imaginar. Seja na literatura, artes plásticas, cinema ou teatro a escatologia se mostra de várias maneiras. Na literatura vemos as fezes sendo utilizadas de forma conceitual, como é o caso de Glauco Mattoso, Rubem Fonseca e até mesmo Ferreira Gullar. Em 2006, o odor dos cinemas pesou com a estréia do filme do diretor Heitor Dhalia, o Cheiro do Ralo, em que a todo momento o personagem de Lorenzo, vivido por Selton Melo, afirmava categoricamente: "Esse cheiro que você está sentido não é meu. É do ralo". Até mesmo na moda, é possível encontras rastros dos excrementos em sapatos feitos de estrume de elefantes. Mesmo inspirando asco, esse ambiente não é tão feio quanto pode parecer.


Em Minas Gerais, o uberabense Mizac Limírio usou estrume de gado para compor seus quadros. O artista plástico emoldurou os excrementos em telas com o fundo trabalhado com pigmentos naturais, terra e pó de arenito, e esmalte sintético. Em entrevista ao site da UOL, o artista explica que, como é acostumado com o esterco, comum nas ruas do bairro onde mora, Jardim Espírito Santo, sua obra pode ser vista como um retrato da cultura da sua cidade. Uberaba é considerada a capital mundial do Zebu, uma espécie de bovino.



A relação entre a fisiologia merda e a arte se harmonizam do campo das significações. Biologicamente, as fezes são os materiais que restam da digestão. A etimologia da palavra remete ao latim faeces, que é o plural de resíduos. Por meio delas, pode-se fazer a análise, entre outras, dos hábitos alimentares, das diferenças genéticas e do stress pelo qual o indivíduo passou. O que é a obra de arte, senão a interação das emoções e da subjetividade do artista?


Quadros feitos por Mizac são produzidos com esterco de boi.


Essa é a opinião do mestre em literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vinicius Pereira de Carvalho, ao avaliar a obra Mr. Mutt de Marcel Duchamp. Carvalho afirma em sua tese Literatura e abjeção: um estudo da imagem das fezes na obra de Rubem Fonseca que defecar é um traço comum entre o artista e o leigo. Humanizado o artista, “artistiza-se” o contemplador, imprecisando-se os limites entre essas instâncias”.


Um grito de Merda


No teatro, um cocô originou o famoso “MERDA”, grito que os atores costumam dar antes de entrar no palco. Essa expressão tem origem na França. Reza a lenda, que um ator francês estava a caminho do teatro, onde iria apresentar uma peça muito importante. Críticos conceituados estariam presentes no espetáculo para avaliá-lo. Contudo, durante o percurso, aconteceram vários incidentes: passou por um incêndio, errou o caminho e, para finalizar, na porta do teatro, pisou numa bosta de cachorro. Fato é que, depois de todos esses obstáculos, a peça foi um sucesso, uma das melhores da carreira do ator. Por isso, hoje, quando o ator diz merda ao outro, está lhe desejando boa sorte.


Outra interpretação para a expressão nasceu no teatro antigo. Os nobres costumavam ir ao teatro de carruagem e os cavalos deixavam seus excrementos pelas ruas. O esterco era um indicador de público para os espetáculos. Então, os atores desejavam muita merda para que as peças estivessem sempre cheias.


A atriz Marisa Orth, em entrevista à revista Vip, trata o assunto de uma maneira mais subjetiva, não menos instigante: “Acho que o hábito de se falar merda antes de entrar em cena está ligado ao fato de que o trabalho é meio sujo, temos que lidar com a anti-vaidade. Se você entrar no palco querendo parecer chique não conseguirá relaxar e fazer o tem que fazer. Para quem está em cena, vergonha pouca é bobagem! Para mim a expressão vem de 'cagada', que significa sorte”, comentou.


E quem disse que na moda não tem merda? Um designer londrino que se apresenta como INSA criou um sapato feito de resina misturada com fezes de elefante. O calçado está exposto na galeria de artes britânica Tate. O artista produziu a peça em resposta ao pintor, também inglês, Chris Offili, que utilizou o mesmo material para a composição de alguns de seus quadros. Offili pintou a Virgem Maria negra, utilizando closes imagens da genitália feminina e estrume de elefante.


Por ser orgânica, a arte com esterco abrange, é claro, a sustentabilidade. A artista americana Susan Bell recicla as fezes de seus cavalos produzindo esculturas de animais como gatos, coelhos e cachorros. As peças servem para ornar jardins. Elas se decompõem lentamente, enfeitando-os e servindo como adubo.

Mas porque tantos questionamentos e tanta repulsa a cerca das fezes? Para Julia Kristeva o abjeto, tem grande importância por ser a regra que foge à exceção. Kristeva afirma, em seu livro Introdução à semanálise, que o mundo se organizou em polaridades que podem ser resumidas pelo interno e externo. A merda, assim como os outros mucos corporais, não fazem essa ponte. Transgridem.


A opinião é partilhada pela doutora em semiologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Vera Casa Nova: "A grande idéia (ao falar de merda) é a idéia da transgressão, de tirar o espectador de seu lugar de passividade. Ele leva um choque e passa a ver o corpo de outra forma.”. Para Casa Nova, a transgressão é o fim da ditadura da beleza. A professora ainda aproveita para fazer uma reflexão: “O que somos nós? A perfeição? A beleza? Nos não somos nada. Somos exatamente isso: um pedaço de merda”.

O lado da merda

Se nas artes plásticas, os artistas podem se apoiar em diferentes formas, cores e textura das fezes, na literatura fica mais difícil se apoiar nos atributos físicos da merda. Por isso, os escritores têm outro mote. Eles se apóiam em diferentes significados que esses dejetos humanos podem ter para construir a peça literária.

No Brasil, o escritor Glauco Mattoso se destaca pela crítica social não através das fezes, mas de todo o abjeto. Não é incomum ler em seus poemas e poesias títulos como “Sonetário Sanitário” e “Penso, logo cago”. Dono de uma trajetória ímpar, Glauco Mattoso é, na verdade, Pedro José Ferreira da Silva, homem que perdeu a visão graças a um glaucoma. Por isso Glauco Mattoso, ou seja, glaucomatoso, aquele que é portador de glaucoma.

“Fiz a apologia da merda em prosa & verso, de cabo a rabo. Na prática, eu queria dizer pra mim mesmo e pros outros: ‘Se no meio dos poucos bons tem tanta gente fazendo merda e se autopromovendo, por que eu não posso fazer a dita propriamente dita e justificá-la? ’”. Foi dessa forma, que em entrevista ao site UOL, Mattoso justificou sua poesia visceral.

Outro autor brasileiro que se apóia nas fezes para criar um clima de transgressão em suas obras é Rubem Fonseca. Fonseca, diferente de Mattoso, é mais um crítico social que um prosador. O autor se esforça em criticar as relações humanas e temas metafísicos, como no conto Cropomancia, do livro Secreções, excreções e desatinos, que questiona porque Deus criou as fezes. Neste mesmo conto, o personagem criado por Fonseca cataloga suas fezes, tirando fotos diárias e depois tenta ler o futuro através delas.

De acordo, com Alexandre Rodrigues da Costa, pós doutorando em literatura brasileira pela faculdade de letras da UFMG, tanto para Rubem Fonseca, quanto para Glauco Matosso, utilizar as fezes como um artifício literário é uma forma de mostrar o outro lado do bonito e tirar o leitor de seu lugar de passividade, da simples contemplação do corpo belo, perfeito e simétrico desenhado por Da Vinci.

Fazendo merda nas artes plásticas

“Conteúdo: 30 gramas; conservado ao natural, produzido e enfrascado em maio de 1961; produzido por Piero Manzoni; made in Italy”. Dentro das 90 latas devidamente lacradas e etiquetadas estavam as fezes do artista plástico italiano Piero Munzoni. O caso clássico aconteceu em 1961, quando Munzoni defecou nas latas e titulou-as como Merde d’artsta ou Merda de artista.

Munzoni reflete o sentimento revoltoso dos dadaístas do início do século passado. O dadaísmo foi um movimento artístico que se iniciou em 1916, em Zurique, por jovens artistas franceses e alemães que, exilados na Suíça, eram contrários à Primeira Guerra Mundial. Abrangeram todas as formas de cultura, entre elas, a literatura e as artes plásticas. Um dos seus maiores representantes, Marcel Duchamp, escancarou a discussão em torno do que poderia ser considerado arte. Por meio dos ready-mades, o artista mostrou que a obra não dependia de uma estética e sim de fatores relacionando com o local onde as obras eram expostas, o valor e a significação que o artista dava para elas, validando-as como arte.

Em harmonia com as principais características do movimento - a negação da cultura e a defesa do absurdo, incoerência e caos - as obras de Muzoni geram discussões que são constantemente debatidas, mesmo na atualidade. Para o professor de filosofia Luiz Henrique Vieira Magalhães, Munzoni encara as latas de merda como uma ode ao choque e ao escândalo. Ele considera os argumentos usados para a interpretação da obra, que visa criticar o mercado das artes, quando o artista vende merda por ouro. Porém, concorda com Ferreira Gullar quando questiona a dimensão artística desse tipo de produção, da insistência do artista em afirmar uma convenção estabelecida anteriormente por outros. “É uma coisa que na verdade já foi feita com Duchamp, são variações do mesmo tema”, pontua.

Outro artista que inovou suas obras com o uso da bosta foi o alemão Martin Von Ostrowski que, em 2000, trocou a tinta a óleo pelas próprias fezes ao pintar um quadro de Hitler. Para ele, o artista é parte do incalculável mundo orgânico, podendo quase se perder nele. Trabalhar com a merda remete à busca de uma razão para se fazer arte. O artista vive em simbiose com os microorganismos e precisa deles para viver. Famoso por suas excentricidades, Ostrowski, além de ter feito outros quadros com fezes, também já usou, como matéria prima para algumas obras, seu esperma e afirma categoricamente: “Eu existo assim como faço digestão, assim como produzo sêmen”.

Esquisitices à parte, fazer o uso da merda como forma, subjetiva ou escrachada, de uma realidade, enriqueceu bastante a reflexão em torno da arte e as variadas interpretações que dela se pode criar. Apesar de que Rita Lee já dizia, “tudo vira bosta”.




Gabriela Rosa e Gustavo Monteiro


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